02 dezembro 2017

«Batida Dupla»… só que não!

Antes de mais nada, leia o post anterior, «O Processo de Fabricação de Moedas». Aquele post é importante e foi criado para que seja plenamente compreendido o que será dito nesta postagem. Se você já leu, releia.

 

Existe uma grande confusão entre os numismatas brasileiros e inclusive entre os comerciantes, mesmo os de renome e com muitos anos de experiência no COMÉRCIO numismático  (e nem sempre nos ESTUDOS numismáticos…), acerca de determinadas anomalias que ocorrem nas moedas brasileiras (e também mundiais), as quais por aqui denominam todas genericamente pelo nome «Batida Dupla».

Algumas se tornaram catalogadas e aparecem nas obras de J. Vinicius, Arnaldo Russo e Carmelino Gomes, e às vezes com cotações altas. Outras, ganharam até mesmo apelidos próprios, como «Mapa Duplo», «Brasil Duplo», etc., porém nenhuma das obras explica o que são essas anomalias e muito menos as suas causas, apenas descrevem o que veem, e inventam apelidos. Pior, tampouco as diferenciam, já que NÃO SÃO todas a mesma coisa, e TODAS as obras escritas até o presente momento, em português, erram em denominá-las como batidas duplas. Simplesmente se limitam a dar cotações, mas como podem cotar o valor daquilo que desconhecem as causas e a sua real importância?

Então passemos a esclarecê-las. Na verdade, estamos lidando com três anomalias diferentes, denominadas «Batida Dupla», «Matriz de Cunho Duplicada» e «Duplicação de Máquina».

A primeira, «Batida Dupla», é bastante óbvia. Porém, estas duas últimas requerem uma explicação bastante detalhada, pois à simples vista, para o numismata desinformado, parecem ser a mesma coisa, porém possuem causas totalmente diferentes. Assim sendo, passo agora a descrever da forma mais cuidadosa possível para que sua identificação seja inequívoca.

 

clip_image001

BATIDA DUPLA (Double Strike): É bastante óbvia à simples e primeira vista. Durante o processo normal de cunhagem, um disco em branco é atingido uma vez pelos cunhos de anverso e reverso, e em seguida a moeda é ejetada. Se uma moeda não for ejetada corretamente, será atingida novamente pelos cunhos. As moedas podem ser inclusive atingidas várias vezes, ocorrendo batidas triplas, quádruplas, etc. (e receberão estes nomes, conforme o número de batidas) e em diversos ângulos distintos daqueles da primeira batida. As batidas duplas podem ocorrer totalmente dentro do disco, ou atingindo somente uma parte do disco, mas SEMPRE em ambos os lados das moedas, anverso e reverso. Todos os elementos do design do cunho são visíveis.

As Batidas Duplas são sempre anomalias importantes, do tipo que chama a atenção ao primeiro olhar, e por isso são muito procuradas e costumam atingir bons preços de mercado, em moedas de todo o mundo. Na numária brasileira, não costuma aparecer com grande frequência. Faz parte dos melhores tipos de anomalias dos quais se pode recolher para a coleção. É preferível aquelas peças que apresentem a data visível.

Seguem exemplos abaixo em moedas brasileiras.

 

Imagem: Leilão Miguel Salles

 

Imagem: Coleção Wagner Lambertuci, que a apelidou graciosamente de «505 Centavos»


Imagem: Coleção Luan Catellan

 

Imagem: Coleção Luan Catellan

 

Um esclarecimento: Como poderás perceber, a moeda desta última imagem possui a segunda batida totalmente invertida em relação à primeira. O ângulo das batidas subsequentes nesta anomalia é irrelevante e não influi em nada, já que é causado por simples sorte e acaso, no saltar parcial da moeda de dentro da virola.

 

MATRIZ DE CUNHO DUPLICADA (Doubled Die, Hub Doubled): Ocorre durante o processo de fabricação dos cunhos, e não durante a cunhagem das moedas.

A Matriz de Cunho Duplicada ocorre durante o processo de criação do cunho macho (mestre) pelo Pantógrafo, máquina que reduz o design a partir de uma matriz de Gesso para um cilindro de aço do tamanho exato da moeda que será cunhada, produzindo assim o cunho macho (mestre). Falamos sobre o Pantógrafo no post anterior.

O erro ocorre quando o Pantógrafo esculpe elementos duplicados no cunho macho (mestre).

Por consequência, os elementos duplicados do design se encontram deslocados, porém todos se veem de alguma forma simétricos e/ou alinhados com relação ao elemento original. Além disso, os elementos duplicados possuem a mesma “altura” do relevo do elemento normal.

Como resultado, todos os cunhos fêmea (que irão cunhar as moedas) produzidos por este cunho macho (mestre) defeituoso, serão igualmente produzidos com elementos do design duplicados em negativo, e a duplicação aparecerá em positivo em todas as moedas produzidas por esses cunhos defeituosos.

No passado, os erros de Matriz de Cunho Duplicada eram muito mais dramáticos devido ao processo de fabricação dos cunhos serem realizados por um Pantógrafo mais rudimentar. Embora a utilização moderna de computadores no processo de design e fabricação das Casas da Moeda tenham reduzido muito o número de erros e anomalias de cunhos, a possibilidade sempre irá existir.

É muito raro que uma duplicação nos elementos de design de um cunho macho (mestre) passem desapercebidos nas Casas da Moeda de todo o mundo. Mas, ao que nos parece, atualmente, na Casa da Moeda do Brasil tal controle de qualidade não é tão eficiente quanto pensamos que deveria ser, haja vista a enorme quantidade de moedas com Matriz de Cunho Duplicados encontrados, de diversos anos e denominações, ou simplesmente fazem a vista grossa quando detectados.

Tais moedas não deveriam existir, nem mesmo seus cunhos defeituosos com elementos duplicados deveriam existir. Há uma cadeia de várias pessoas, desde o operador do Pantógrafo, passando pelo funcionário responsável pela criação dos cunhos-fêmea a partir do cunho macho, passando pelos funcionários responsáveis na inserção dos cunhos fêmea de anverso e reverso nas máquinas, até o pessoal do controle de qualidade, que poderiam ter percebido o defeito no design do cunho macho, dos cunhos fêmea, e até nas moedas já cunhadas. Por isto mesmo, são anomalias importantes, e sempre possuem uma boa valorização.

Seguem agora exemplos dessa anomalia em moedas americanas e brasileiras.

Primeiro, a «Matriz de Cunho Duplicado» mais famosa dos Estados Unidos, a «1955 Doubled Die Obverse Lincoln Cent»:

A história desta anomalia americana é bem conhecida. À época, a Philadelphia Mint, a Casa da Moeda da Filadélfia, estava executando dois turnos de 12 horas cada, pra ajudar a aliviar a falta de moedas de 1 Cent. Pelo menos sete pessoas deveriam ter inspecionado o cunho macho (mestre) antes do mesmo ter sido utilizado para produção dos cunhos fêmea que cunhariam as moedas, mas isto claramente não ocorreu. Em vez disso, os cunhos fêmea foram postos em serviço entre 0h e 8h da manhã. O problema não foi descoberto até que cerca de 20.000 a 24.000 centavos já haviam sido cunhados e misturados com milhões de centavos cunhados naquela noite. O Chefe da Philadelphia Mint, Sydney C. Engel, decidiu deixar passar as moedas, ao invés de ter que derreter cerca de 10 milhões de centavos para contê-las.

Na numismática brasileira, ocorrem ainda, anomalias de Matriz de Cunho Duplicado nas atuais moedas circulantes do Plano Real 2ª Família, em diversas datas e denominações:

5 Centavos 2005 “Brasil Duplo”: Descoberta e fotografada pelo numismata Tiago Minosso

 

Tenho conhecimento das seguintes denominações e datas em meu banco de dados:

R$ 0,01: 2000
R$ 0,05: 2002, 2005 (“Brasil” em duplicidade, bastante deslocado, imagem logo acima)
R$ 0,10: 1998, 2000, 2001, 2008
R$ 0,25: 2001 (existem duas, uma no anverso e outra no reverso)
R$ 0,50: 1998
R$ 1,00: Nenhuma peça conhecida

(Solicito a gentileza de me informarem sobre novas datas, com imagens em alta resolução, pra que a tabela acima seja sempre atualizada).

 

DUPLICAÇÃO DE MÁQUINA (Machine Doubling, Mechanical Doubling, Shift Doubling, Strike Doubling): Embora a princípio seja, à primeira vista, e com olhos destreinados, idêntico à Matriz de Cunho Duplicado, as causas e o resultado são diferentes: Os cunhos não estão defeituosos, e sim, o erro ocorre durante o processo de cunhagem.

Essa anomalia ocorre quando peças mecânicas (principalmente os cunhos) que estão frouxas, mal apertadas ou soltas na máquina de cunhagem causam um golpe mais fraco do que o normal dos cunhos sobre as moedas, fazendo com que determinados elementos saiam trêmulos e/ou duplicados. Porém, não há duplicação de elementos no cunho, apenas nas moedas cunhadas.

Como bem disse o amigo numismata Warley Soares, que, graciosamente (e acertadamente!) disse, “é um problema na rebimboca da parafuseta”.

Por consequência, os elementos duplicados do design se encontram deslocados, porém todos se veem assimétricos e/ou desalinhados. Além disso, os elementos duplicados NÃO possuem a mesma “altura” do relevo do elemento normal, sendo mais baixo (intermediário entre a altura do design do elemento, e o campo da moeda). Se o cunho não estiver encaixado corretamente na máquina de cunhagem, ele pode mover-se ligeiramente ou saltar durante a cunhagem, criando as duplicações. O efeito será ligeiramente diferente ao longo do tempo, e muitas variedades (e não variantes…) poderão ser encontradas.

Esta não é uma anomalia importante, não possui valor de mercado significativo em nenhum lugar do mundo, (exceto pelo câncer da especulação, causado pela ganância financeira e desconhecimento de causa de alguns comerciantes) e deve ser inserida na coleção como UMA MERA CURIOSIDADE.

Na numária brasileira temos vários exemplos, sendo que a mais famosa «Duplicação de Máquina» brasileira é a moeda «1 Cruzeiro 1949» à qual apelidam (erroneamente) de «Mapa Duplo».

 

Reverso da moeda «1 Cruzeiro 1949» a qual chamam de «Mapa Duplo».
Cortesia da Imagem: Gilberto Fernando Tenor, Presidente da Sociedade Numismática Brasileira

 

O norte do estado de Roraima, e o Sul do Rio Grande do Sul no Mapa do anverso da moeda estão com elementos duplicados, além do BR de BRASIL e os traços assimétricos e desalinhados à direita e à esquerda. Todas as peças conhecidas de 1 Cruzeiro 1949 estão no estado de conservação MBC e inferiores. A mesma anomalia ocorre em moedas de 1 Cruzeiro de datas diferentes, e ´também na moeda de 2 Cruzeiros. Pra algumas, denominam de forma confusa como «Mapa Duplo ao Norte», mas é apenas uma variedade da mesma anomalia de Duplicação de Máquina.

 

mapanorte

Reverso da moeda «2 Cruzeiros 1949», a qual chamam de «Mapa Duplo ao Norte»
Imagem: J. Mesquita Leilões

 

Reverso da moeda «1 Real 2012 Entrega da Bandeira Olímpica», a qual chamam de «Bandeira Dupla»


Recentemente também surgiu Duplicação de Máquina em diversas denominações e eras do Plano Real, na qual destacamos em especial a que surgiu na peça «1 Real 2012 Entrega da Bandeira Olímpica», por ter aparecido no catálogo de Carmelino Gomes registrada erroneamente como «Batida Dupla», assim como algumas das peças da série das Olimpiadas. Todas são as anomalias insignificantes de Duplicação de Máquina.

Repare que igualmente à «Mapa Duplo», os traços em duplicidade, na palavra "REAL” são assimétricos e desalinhados, caracterizando inequivocadamente como Duplicação de Máquina.

 

Portanto, em síntese, temos:

BATIDA DUPLA: Cunhos batem mais de uma vez. Todos os elementos do design do cunho se repetem na segunda batida (e na terceira, quarta batida, etc… se houver).

MATRIZ DE CUNHO DUPLICADA: Cunhos batem uma vez. Apenas pequenas partes ou elementos do design se repetem, de forma simétrica e alinhada ao design. O elemento duplicado tem a mesma altura de relevo do elemento original.

DUPLICAÇÃO DE MÁQUINA: Cunhos batem uma vez. Apenas pequenas partes ou elementos do design se repetem, de forma assimétrica e desalinhada ao design. O elemento duplicado possui altura intermediária entre o relevo do elemento original e o campo da moeda.

 

Bibliografia utilizada:

- «The Cherrypickers' Guide to Rare Die Varieties», Bill Fivaz e J. T. Stanton
- «The Error Coin Encyclopedia», Arnold Margolis
- «The Complete Guide to Lincoln Cents», David W. Lange
- «U.S. Error Coin Guide», Stan McDonald
- «100 Greatest U.S. Error Coins», Nicholas P. Brown
- «World’s Greatest Mint Errors», Mike Byers
- «Error Coins from A to Z», Arnold Margolis

Finalizo com uma mensagem: Colecionar moedas anômalas é divertido e gratificante, porém é importante conhecer quais são as anomalias importantes e quais são erros sem importância. Espero que este artigo tenha sido útil para todos os amigos numismatas, especialmente para discernir claramente a diferença entre moedas com matrizes de cunho duplicadas e duplicação de máquina.

Caso reste alguma dúvida, deixe abaixo o seu comentário!

 

Atualização em 24 Junho ‘2020

Este artigo foi publicado (com revisões) no site «Numismática Castro» em 7 Março ‘2018 e dividido em dois.
Link: https://numismaticos.com.br/batida-dupla-ou-double-strike/

Link: https://numismaticos.com.br/matriz-de-cunho-duplicada-ou-hub-doubled/

 

Este artigo foi publicado (melhorado) no site «Collectgram» em 28 Fevereiro ‘2019 e dividido em dois.
Link: https://collectgram.com/blog/moeda-batida-dupla-a-verdadeira/ 

Link: https://collectgram.com/blog/moedas-com-erros-matriz-de-cunho-duplicada-a-falsa-batida-dupla/

01 dezembro 2017

Dia do Numismata

O Processo de Fabricação das Moedas

Para explicar como ocorre, teremos que detalhar o passo-a-passo de como é feita uma moeda, a partir do zero, desde a mesa do artista até a fabricação dos cunhos e a cunhagem das peças. Infelizmente não disponho de imagens de moedas brasileiras pra ilustrar, pois a nossa Casa da Moeda esconde tal processo com um secretismo idiota, sendo que outras Casas da Moeda do mundo o divulgam abertamente. Por isso me servirei das moedas americanas e do processo americano, que é o mesmo que o brasileiro e utilizado mundialmente na atualidade.


Primeiro, é criada uma imagem no computador, do que será a moeda.


Com o esboço pronto, o artista escultor-gravador serve-se de um molde em gesso, no qual irá esculpir, em alto relevo, o design da futura moeda. Este processo também pode ser realizado mecanicamente.


Molde de Gesso original da moeda 5.000 Réis 1938, em exposição na sede da Sociedade Numismática Brasileira. (Cortesia da imagem: Numismata Luan Catellan)


Um molde de borracha é criado utilizando o molde de gesso, pois o gesso é muito frágil.


A imagem da moeda é uma escultura de gesso com 8 a 12 polegadas de diâmetro. Esta é inserida em uma máquina denominada PANTÓGRAFO, que reduz a imagem da escultura em gesso ao tamanho real no qual será cunhada a moeda, criando assim uma matriz de cunho macho (mestre) em um cilindro de aço. Este é um processo lento e tedioso, demorando de um dia e meio a dois para completar a transferência do design da escultura de gesso para o cunho macho (mestre).

Agora começa a fabricação dos cunhos de trabalho (cunhos fêmea, aqueles que realmente irão cunhar as moedas).



HUB é o cunho macho (mestre) que foi criado pelo pantógrafo, à partir do molde em gesso. Com ele, cria-se os cunhos fêmea, ou DIE, que possui a imagem em negativo (baixo-relevo), que cunhará as moedas.

O processo de metalurgia utilizado para criar matrizes de cunho é denominado Hubbing. É um processo à frio, o que significa que ocorre bem abaixo da temperatura de fusão do metal que está sendo trabalhado.


No hubbing, o cunho macho (mestre) criado com o pantógrafo é utilizado para a fabricação dos cunhos fêmea (de trabalho, que irá cunhar as moedas). O cunho macho é geralmente endurecido e é exatamente igual à futura moeda, e o bloco de aço de matriz fêmea é amaciado por recozimento para ajudar a formar a impressão do cunho fêmea (que terá uma imagem em negativo). À medida que o cunho macho atinge o bloco de aço de matriz fêmea, esta é deformada, e usinada de forma plana. No geral, o cunho macho é um cilindro reforçado por um anel de aço circundante durante o processo de cunhagem. O hubbing é geralmente um processo menos caro do que o mero processo de usinagem da matriz fêmea, e várias matrizes de cunho podem ser feitas a partir do cunho macho.

Cada cunho assim produzido possui uma vida útil média de 1.000.000 de cunhagens, ou seja, 1 milhão de moedas cunhadas. Pela quantidade de moedas brasileiras encontradas com anomalias de cunho rachado e quebrado, sabemos que nossa Casa da Moeda prolonga essa vida útil pra bem mais que 1 milhão de cunhagens.


Uma bobina de aço é desenrolada e inserida em uma máquina que cortará os discos para a fabricação das moedas. Estes discos serão então lavados, e inseridos na máquina de cunhagem.


Os discos em branco entram na máquina de cunhagem, que produz 750 moedas cunhadas por minuto. O disco cai em um buraco, chamado VIROLA, que possui o cunho fixo (geralmente de Reverso) abaixo. A virola impede que o disco se expanda durante a cunhagem. O cunho móvel (geralmente de Anverso), também chamado de “martelo”, bate no disco, cunhando assim a peça.

Daí as peças irão para outra máquina, que as irá pesar e ensacar em sachês (Brasil) ou inserir as moedas em rolos de papel (EUA), e daí, vão pros bancos pra serem distribuídos à população.


Como se pode perceber, não há muito mistério, e, quando compreendemos bem como funciona o processo de fabricação das moedas, desde o esboço inicial, passamos a entender também como as anomalias ocorrem.

Decidi postar aqui o passo-a-passo, não só pra ilustrar o processo de forma detalhada, mas também porque estas explicações serão necessárias para o próximo post do blog, onde falarei sobre uma anomalia muito importante: A Batida Dupla, que precisa ser explicada e desmistificada.

Deixe abaixo o seu comentário!